falamos a mesma língua

Alejandra Pizarnik meets Death Cab for Cutie

Ausência, memória e linguagem como vertigem: quando Pizarnik e Death Cab se encontram na estética da perda.

Num dia que amanheceu cinza, decidi dar uma causada na hora seguinte ouvindo o disco Transatlanticism, da banda Death Cab for Cutie, a caminho do trabalho. É um dos meus discos preferidos, mas do qual me afastei nos últimos anos. Ou melhor: evitei. Quem conhece sabe que não é exatamente uma trilha animada, e, quando há memórias difíceis associadas, a audição fica ainda mais densa. Mas naquele dia, com aquele céu fechado, parecia a trilha sonora ideal. As nuvens sussurravam melancolia.

Minha música favorita do álbum é “Title and Registration”. Sempre foi, desde a primeira vez que ouvi. Tive a sorte de vê-los ao vivo em 2018, e quando tocaram essa, lembro de segurar algumas lágrimas.

O que mais me encanta nas composições do Ben Gibbard é o quanto são visuais. Consigo ver o que ele viu, sentir o que ele sentiu. Eu nem tenho carro — na real, nem sei dirigir. Mas quando essa música começa, estou no banco da frente, abrindo o porta-luvas, revirando papéis atrás da minha habilitação ou do seguro… sei lá (que documentos tem um carro?).

Posso não ser motorizada, mas compartilho com essa música certos territórios internos: arrependimentos, um coração que já foi partido, e algumas perdas. Já gastei noites de sono demais remoendo o passado, culpando ausências, negociando com a solidão.

É tudo meio emo, meio deprê. E foi mesmo um dia assim — ainda que disfarçado sob pilhas de trabalho. Me ocupei com tarefas, voltei de ônibus pra casa, fui pra academia, cumpri os rituais da noite.

Depois de tudo, cheguei ao meu momento favorito do dia: deitar e ler um pouco. Tenho lido muita poesia. E por “poesia”, quero dizer: praticamente só leio Alejandra Pizarnik, minha autora do coração. Eu sei, talvez não ajude no clima melancólico... mas o coração tem lá suas vontades.

Não sigo uma ordem. Abro a antologia poética em uma página qualquer e deixo o acaso escolher por mim. Às vezes leio mais, às vezes menos.

Naquela noite, caiu o poema “Procurar”, que na minha edição está na página 149.

Na hora, minha cabeça voltou para dentro do carro, procurando um documento no porta-luvas. A conexão foi imediata. Eu já sabia que a Pizarnik era emo — mas caramba! O poema e a música pareciam parte do mesmo texto.

“Procurar. Não é um verbo, mas uma espécie de vertigem.”

“The glove compartment is inaccurately named / And everybody knows it...”

O desajuste da linguagem. Palavras que não dão conta do que carregam. Há deslocamento entre o nome e a função, entre a memória e o consolo que ela falha em oferecer.

“Não quer dizer ir ao encontro de alguém, mas jazer porque alguém não vem”.

“And here I rest where disappointment and regret collide / Lying awake at night”

Para Pizarnik, “procurar” não é movimento, é paralisia. Assim como para Gibbard, a cama não é descanso, mas território de arrependimento e decepção. Um lugar pra remoer, acordado.

Ambos constroem um microcosmo da perda: Pizarnik, mais abstrato; Gibbard, mais cotidiano. Poesia e música se tornam instrumentos não de consolo, mas de testemunho da ausência.

E assim fomos dormir.
#tristinha mas tá bom

Ouça "Title and Registration" no Spotify

alejandra pizarnik meets elliott smith

O silêncio não salva, mas também não mente.

Comecei em um novo emprego recentemente, e faz parte da minha integração ir muitos dias ao escritório. Apesar do cansaço, não acho má ideia. Realmente faz diferença conhecer e interagir presencialmente com meus novos colegas. Ninguém conhece ninguém via Slack, né?

Isso tem me servido para duas coisas:

1. Tenho ouvido mais música no meu dia.
Sabe... apoiar a cabeça na janela e fingir estar num clipe. Eu até faria, mas o ônibus que pego está sempre muito lotado e não dá pra sentar. (Não conta pra ninguém, mas às vezes apoio a cabeça nas costas de alguém e finjo mesmo assim. #aloka)

2. Um pouco antagônica à 1., mas tenho buscado o silêncio.
Moro sozinha, meus dias já contam com mais silêncio do que os de quem divide a casa com amigos, cônjuges ou pais. Apesar disso, minha casa nunca foi exatamente silenciosa. Ouço música, adoro assistir séries, ouvir podcasts e falo muito sozinha (aloka #2).

Mas desde que iniciei essa rotina de quatro dias por semana no escritório, sem previsão de um fim, muita coisa mudou. Chego em casa e me torno uma versão afônica de mim mesma. Não tenho muito o que dizer. Sabe quando a gente vai para a academia e volta arrasada, com preguiça até de ficar em pé no banho? Sinto isso, só que nos ouvidos. A ideia de ouvir alguém da minha série conforto falando já me irrita. Às vezes pulo até minha novela (tem que ter paciência pra ouvir a Heleninha Roitman).

Tenho tomado banho em silêncio. Não porque quero, mas porque tem sido a única opção. Logo eu, que adoro cantar os maiores hits da Dolly Parton. Minha vizinha deve estar amando. Eu, nem tanto. Mesmo sendo uma condição imposta pelo cansaço, o silêncio nem sempre é reconfortante. Ele é apenas necessário.

Mas o problema do silêncio é que ele dá lugar ao diabo que mora na minha cabeça. Quem falou que mente vazia é a oficina dele, mentiu. Minha cabeça está cheia, explodindo, e ele lá, a todo vapor.

Vamos ao ponto. Essa história toda sobre silêncio me veio porque, dia desses, em mais uma das minhas noites pizarnikianas (pizarnikenses?), abri minha antologia poética no poema “Signos”:

“Tudo faz amor com o silêncio.
Haviam me prometido um silêncio como um fogo, uma casa de silêncio.
Subitamente o templo é um circo e a luz um tambor.”

Aqui, o silêncio é utopia. Símbolo de abrigo, interioridade, calor e transcendência. Ele não é ausência, mas presença plena e densa, como um fogo ou uma morada. Como ele costumava ser para mim. Mas o templo, esse espaço sagrado e recolhido, se desfaz no espetáculo vazio do circo. A luz, que deveria iluminar, vira som. Dissonância, ruído. O mundo perde seus significados.

E vejam só. No caminho para a Faria Lima (Curia Lima, pros íntimos), me vi diante de outro traído pela promessa do silêncio: o favorito do seu favorito, Elliott Smith. Na minha canção preferida, “Can’t Make a Sound”, ele canta:

“I have become a silent movie
The hero killed the clown
Can’t make a sound”

Não satisfeito, ele segue:

“The slow motion moves me
The monologue means nothing to me
Bored in the role, but he can't stop
Standing up to sit back down
Or lose the one thing found
Spinning the world like a toy top
'Til there's a ghost in every town
Can't make a sound”

O silêncio em que Smith se encontra é estéril, sem transcendência. Ele não é abrigo, mas impotência existencial, perda da voz e da ação. É a única linguagem possível quando o mundo se desfaz. Quando o templo vira circo. Quando o herói mata o palhaço. A linguagem já não serve mais.

Nesse vácuo, o silêncio é a única coisa que não mente, embora também não salve. Ele marca o ponto de crise. E é justamente aí que ainda sobrevive a poesia. Uma poesia do colapso, da lucidez amarga, do último som que já não se pode emitir.

#Saiam da minha cabeça

Ouça "Can't Make a Sound" no Spotify

lygia fagundes telles meets boygenius

Ai, que cheiro ruim.

Se parece estragado, tem cheiro de estragado e age como estragado, só pode estar podre.

Esses dias me chamaram de Cronenberg porque eu disse que queria poder tirar meu cérebro de dentro da cabeça, colocar sob água corrente, lavar com sabão, cavucar cada ruga e limpar bem, muito bem. Deixar de molho em água quente com Vanish e depois dar um choque térmico nele numa bacia com água e muito gelo. Acho que daria um bom reset.

Tenho essa vontade há muito tempo. De resetar. Prefiro pensar que não tenho muitos arrependimentos, que tudo me serviu pra alguma coisa. Mas aí, gente… a real é que eu mudaria algumas coisas na minha vida, sim.

Meu primeiro relacionamento amoroso me assombra. Só penso no cara quando estou numa mesa de bar com meus amigos e damos risada dos micos da nossa vida. Mas remoí, por muito tempo, amargamente, quem eu me tornei depois dele.

A sensação de terminar foi ótima, um livramento. Mas eu não sabia o que fazer com aquele novo eu. Quem era aquela pessoa? Toda manhã eu acordava no corpo de uma desconhecida.

E eu usei esse não-eu como uma armadura por muito tempo. A Lorde descreveu isso melhor em "girl, so confusing": era só autodefesa até eu estar construindo uma arma.

Meu maior medo passou a ser deixar alguém me conhecer de novo. De verdade. Sentia como se um bolor estivesse se proliferando dentro de mim.

Mas pior que deixar alguém conhecer era encarar a realidade de que não era uma desconhecida. Era eu. Transformada, mas eu. Não dá pra sair por aí culpando os outros, fingindo que o Taz-Mania de franjinha não sou eu.

Chorei quando ouvi "girl, so confusing" pela primeira vez. Mas chorei mais ainda quando o satanás da Lucy Dacus cantou isso aqui em "Souvenir", das boygenius:

Pulling thorns out of my palm
Working midnight surgery
When you cut a hole into my skull
Do you hate what you see?
Like I do

Falou diretamente comigo. Foi tão visceral, quase clínico. Uma autópsia emocional consciente, sem anestesia. Há dor, exposição e, sobretudo, uma pergunta: Do you hate what you see? Like I do.

O outro se torna espelho e juiz. A autopercepção negativa busca confirmação externa, mesmo que isso aprofunde a dor.

Foi uma experiência parecida com quando, uns cinco anos depois de ouvir essa música pela primeira vez, li A Disciplina do Amor, da Lygia Fagundes Telles. E ali pelos meios do livro, senti o fantasma de Dacus no meu ouvido: booooooo.

Tem um texto intitulado "18 de março". Nele, Telles não teve dó de mim e escreveu:

“Ele estava com um livro na mão mas não lia, olhava em frente, quieto. Perguntei o que ele estava olhando. “Estou olhando aqui dentro de mim mesmo” - ele respondeu. E o que você está vendo é bonito? - eu quis saber e seus grandes olhos esverdeados estavam úmidos e neles, como num espelho, vi refletido o seu interior. Fui saindo na ponta dos pés.”

Lucy e Lygia falam do risco de ser visto por completo. Da vulnerabilidade da alma exposta. E da pergunta silenciosa que paira: é possível amar o que se vê por dentro?

De certa forma, sinto um conforto lendo e ouvindo tudo isso.
É muito solitário pensar que só você sente uma inadequação profunda. Ainda tenho meus conflitos, mas tenho aprendido que dá pra ser muito amada, mesmo assim.
E esse amor pode tomar muitas formas. Até a de sair de fininho, na ponta dos pés.

#Não ouça boygenius domingo à noite

Ouça "Souvenir" no Spotify

meu encontro com josé

e o encontro dele com Virna e Ernesto — e o nosso com Alejandra

Alguns anos atrás, dei uma passadinha descompromissada na Livraria da Travessa, na Rua dos Pinheiros. Fui só dar aquela olhada como quem não quer nada, sem nenhum título em mente.

Enquanto explorava a seção de poesia, minha atenção foi capturada por uma capa bordô. O livro era pequeno e curto, mas o título saltou aos olhos: O Inferno Musical. Era um livro de poesias da escritora argentina Alejandra Pizarnik. Nunca tinha ouvido falar dela, mas senti que havia algo ali para mim. Li a orelha e sorteei um poema qualquer para ler. Fui direto ao caixa e levei o livro pra casa.

Devorei. Como falei, era curtinho. Mas arrebatador. Nunca tinha lido nada parecido. Tem coisa melhor do que sentir a vida mudando depois de um novo livro? Sabia que, dali em diante, nada mais seria o mesmo. Tudo seria Pizarnik.

Naquela hora, A Pedra Fundamental se tornou meu poema favorito, e continua sendo, alguns anos depois. Li e reli, sem acreditar que vivi tanto tempo sem esse poema correndo na minha mente todos os dias. Um trecho me marcou profundamente:

“Yo quería entrar en el teclado para entrar adentro de la música para tener una patria.”

Se eu tivesse a disciplina de manter diários, diria que ela leu todos eles antes de escrever esse poema. Passei a sentir um tipo de devoção parecida com o que sinto pela banda Joyce Manor ou pelo meu cachorro Joey. Coisas que se tornam indissociáveis de mim.

Depois de me apaixonar pela obra dela, reuni coragem para fazer minha primeira viagem completamente sozinha. No ano passado, passei uma semana em Buenos Aires. Caminhei bastante, comi comidas deliciosas e tentei absorver tudo o que pudesse da terra dessa autora que guardo tão próxima ao coração.

Voltei de lá com uma certeza: eu precisava ler Pizarnik no idioma dela. Queria escutá-la sem tradução, na densidade original de suas palavras. Me matriculei em aulas de espanhol, empolgadíssima. Fiz alguns meses, até precisar pausar quando comecei no meu emprego atual. Me faltou tempo. Pretendo retomar, porque até o pouco que aprendi já abriu caminhos novos na leitura.

Minha viagem foi mágica. Entrei em livrarias e sebos, e com meu espanhol safado conversava com as pessoas sobre essa escritora que tocou tantos outros além de mim. Voltei de lá com sua poesia completa, em espanhol. Não que eu quisesse carregar um calhamaço na mala, mas o dono de uma das livrarias me contou que, na Argentina, as editoras não vendem os livros dela separadamente, como a Relicário faz aqui no Brasil.

Na segunda noite em Buenos Aires, voltando de um show da banda Neokira (que também adoro — ouça o EP Sacrificar Lo Individual no Spotify), o motorista do Uber engatou um papo ótimo comigo. E, como sempre, falei da Pizarnik.

Ele me contou que fazia corridas de Uber, mas que também trabalhava com cinema. E que, em um dos circuitos em que atuou, ajudou na exibição de um documentário sobre a Alejandra. Imaginem minha felicidade. Ele me passou o número de telefone para que eu entrasse em contato depois, e ele me enviasse o filme.

Mas eu sou atrapalhada. Perdi o número dele em meio às minhas bagunças digitais e analógicas, o que me deixou com um pesar enorme. Nem tanto pelo filme (que depois descobri ser fácil de encontrar no YouTube e outros cantos da internet), mas pela pessoa. Fiquei apegada à ideia de assistir ao documentário por onde ele me enviasse.

Corta para hoje. Consegui economizar 20 minutos do meu horário de almoço, então fui fuçar o celular, ver fotos antigas — coisa que adoro fazer. E encontrei uma imagem de maio do ano passado: um pedacinho de papel com o nome e telefone do argentino com quem conversei no carro. Acho que sabia que não deveria confiar na minha organização e fotografei para não perder. Só não lembrei de me lembrar disso.

Na hora, mandei uma mensagem pra ele. Me apresentei, recapitulei nossa breve conversa e perguntei se ainda seria possível receber o link para o documentário. Ele me respondeu com muita gentileza, dizendo que sim. Está trabalhando em um festival de cinema em Bariloche e se comprometeu a buscar o filme para mim em agosto, quando suas atividades no festival terminarem e ele tiver mais tempo.

Agradeci e segui o dia.

Exatamente uma hora depois (está registrado no WhatsApp: 15h11 e 16h11), ele me enviou dois links e um áudio. Coloquei o fone de ouvido e dei play. Com uma voz alegre, me contou que tinha saído de casa para um compromisso e, no caminho, encontrou algumas pessoas conhecidas. Para minha surpresa — e para a dele — eram os diretores do documentário da Pizarnik. Eles moram perto do bairro dele.

Trocaram algumas palavras, ele contou sobre minha mensagem, e o casal prontamente enviou os links para assistir ao documentário. Um deles é pago, mas o outro está disponível em um streaming argentino gratuito, o Cine.AR Play. Já criei uma conta e salvei para assistir. Busquem por "Alejandra".

Essas coisas costumam acontecer comigo quando a lua está bem brilhante no céu, mas ainda era dia. Agradeci ao José pela disposição em ajudar uma completa desconhecida e comentei como a vida nos surpreende. Ele me respondeu com a mensagem mais linda:

La magia de Alejandra y Clarice.

Acho que é bom nos apegarmos a algum tipo de mágica, de mistério. Enviei a primeira mensagem um pouco desesperançosa. Vai que ele trocou de número, ou não lembra de mim, ou qualquer outra coisa. Hoje nossos celulares recebem tanto spam, tanta porcaria. Minha tentativa de contato poderia se perder. Ele poderia ter me ignorado também. Quem nunca.

Mas não. Ele seguiu pelo caminho mais gentil, e a vida se encarregou do roteiro. Colocou os diretores no caminho dele e uma surpresa no meu.

Desejo muito sucesso ao Jose no Festival de Bariloche e em todas as suas futuras atividades. Por aqui, seguirei me movendo pela mágica, minha e da Alejandra. Ou, como Nick Cave e Seán O'Hagan discutiram uma vez no livro Fé, Esperança e Carnificina, com dúvida e encantamento.

nossa troca

#Nem só de tristeza vive esse blog

toda manhã é uma montação

saw a woman I had never met

Toda manhã é uma montação.

Acordo depois de ignorar uns oito alarmes. Levanto e vou direto ao banheiro lavar o rosto. Durmo com um ácido na pele (tratamento de acne da mulher adulta), então é indispensável tirá-lo pela manhã. Passo meu hidratante nos olhos, depois no rosto. Em seguida, um creme que eu nem sei exatamente pra que serve — e aí vem o protetor solar.

Sigo para a maquiagem. Corretivo nas áreas que quero cobrir: olheiras, laterais do nariz, queixo, testa. Ou seja, o rosto inteiro. Depois, blush líquido, pó compacto e blush em pó por cima. Penteio a sobrancelha com gel para ela ficar no lugar (pra onde ela iria?). Se estou disposta, passo delineador. Se não, só máscara de cílios mesmo. Finalizo com batom.

No corpo, hidratante e perfume. No cabelo, chapinha na franja e modelagem no resto. Se estou com preguiça — o que é comum — ajeito só a franja e prendo. Escolho uma roupa, um sapato, pego minha bolsa do tamanho do mundo e sigo para o ponto de ônibus.

A rotina segue. Do espelho do banheiro ao do elevador, com paradas estratégicas na câmera frontal do celular. Entre um retoque e outro, vou sustentando essa versão de mim com os recursos disponíveis.

Mas é no fim do dia que tudo escorrega.

Pego o ônibus de volta pra casa. Ele vem mais cheio que de manhã. Vou em pé, um tanto desconfortável, sempre de frente para uma janela. É aí que me bate.

Quem é ela?

No reflexo do vidro, uma mulher me encara de volta.

Essas linhas todas são minhas? Essas olheiras profundas são meus olhos que carregam?
Essa boca com os cantos caídos... sou eu?

Não tenho medo de envelhecer.
Mas quando foi que chegou a minha vez?

Será mesmo só a passagem do tempo? Ou tem algo me puxando pra baixo? Um cansaço crônico, uma tristeza sem escândalo. Já estive pior, mas ali, parada no trânsito, espremida entre ombros e sacolas, o reflexo me parece o buraco mais fundo.

Será o trabalho?

Quando eu era adolescente, o tempo parecia estar sempre por vir.
Hoje parece que ele já passou por mim sem avisar.

No nível exato do meu melodrama interno, algumas músicas têm me encontrado. Ou talvez eu as encontre, como quem busca espelhos mais generosos.

You may tire of me as our December sun is setting
'Cause I'm not who I used to be
No longer easy on the eyes
But these wrinkles masterfully disguise the youthful boy below
Who turned your way and saw something he was not looking for
Both a beginning and an end
But now he lives inside someone he does not recognize
When he catches his reflection on accident

Death Cab for Cutie, “Brothers on a Hotel Bed”

Ouvia muito essa música quando tinha 19 anos, sob outra perspectiva.
Confesso que bateu diferente quando ouvi hoje.

You might wake up and notice you're someone you're not
If you look in the mirror and don't like what you see
You can find out firsthand what it's like to be me
So gather 'round, piggies, and kiss this goodbye
I'd encourage your smiles, I'll expect you won't cry

My Chemical Romance, “The End.”

É bom poder contar com o Gerard Way pra colocar a dose certa de caos nesse cansaço. Mal posso esperar pra gritar esses versos ano que vem, honrando minha versão de 13 anos. Aquela que não fazia ideia do que era ser esmagada todos os dias pelo epicentro financeiro de São Paulo.

Essas músicas me ajudam a nomear o que às vezes me escapa.
O susto de se ver.
A surpresa de não se reconhecer.
O medo de que talvez seja isso mesmo. De que eu já tenha virado outra.

Mas sigo. Me maquio. Me arrumo. Retoco o batom depois do almoço. E olho de volta, todos os dias, pra aquela janela do ônibus.

Quem sabe, qualquer hora dessas, ela me devolva um aceno.

#Here’s my resignation. I’ll serve it in drag!

Ouça "Brothers on a Hotel Bed" no Spotify

Ouça "The End." no Spotify